A porta das Mentiras
Não obstante esta porta ter transitado do nome que surge em título para o seu oposto, isto é, para porta das Verdades; creio que mentiras estará certamente mais de acordo com a sua índole inicial, que adiante veremos. Esta muito antiga entrada da cidade desapareceu no ano de 1788, pois foi a 16 de abril desse ano, a pedido do escrivão do registo eclesiástico do bispado do Porto, que se celebrou um contrato referindo o seguinte:
«que ele em seu nome e de outros moradores da sobredita rua de Detrás da Sé fizeram uma representação por escrito ao Ilustríssimo Senado da Câmara desta mesma cidade dizendo nela que o postigo das Verdades que se acha no fim da mesma rua e que dá serventia aos seus habitadores e aos de todas as vizinhanças da Sé, e ainda da rua Chã para o Codeçal, e Ribeira se achava ameaçando evidente perigo por ter em cima do arco uma parede muito arruinada, e parte de outra do lado do nascente ainda mais, sendo a passagem de degraus muito violentos, e alguns desses se tinham demolido e com a próxima invernada se arruinarão mais o que tudo concorria para fazer muito violenta aquela serventia que é muito frequentada. Que ele representante por ter junto aquele sítio uma porta no seu quintal e outros mais seus vizinhos se ofereciam a fazerem muito cómoda aquela serventia formando-se uma lingueta em lugar de degraus ademolindo-se [sic] o arco que de nada servia senão de ameaçar evidente perigo concedendo-lhe o dito Ilustríssimo Senado licença para a dita obra à própria custa do representante, que nenhuma despesa para ele pedia ao público somente que ele se possa utilizar da pedra da dita demolição e tirar do mesmo sítio a mais que lhe fosse necessária por haver junto à Capela de Nossa Senhora das Verdades bastantes pedreiras e o dono delas nenhuma dúvida a isso punha, nem no mesmo sítio se achava alguma casa junto do dito arco que para ele tivesse janela ou servidão alguma para a dita obra [nem] causava prejuízo algum a alguém, e só grande utilidade ao público o muito maior por lhe não pedir despesa alguma para ela. Pedindo que o mesmo Ilustríssimo Senado se dignasse conceder-lhe a referida licença atentas as razões expostas e a que com outra lingueta que se mais queira fazer abaixo e onde se achava[m] outros degraus poderiam ir com muita facilidade liteiras, e cadeirinhas até o Recolhimento de Nossa Senhora do Patrocínio»
o retângulo vermelho assinala o local onde se encontrava a porta ou postigo das Verdades : a azul encontra-se representado um caminho (desativado aquando da abertura da avenida Vimara Peres), nele ainda se identificam arcos do aqueduto do colégio dos jesuítas (setas azuis)
Este pedido foi levado à Junta das obras Públicas que o deferiu mediante algumas condições:
«obrigando-se o suplicante por escritura pública a por um padrão junto à Capela da Nossa Senhora das Verdades e no qual se grave um letreiro em que se diga que naquele sítio havia monumentos de um arco que ameaçava considerável ruína o qual mostrava vestígios da cidade antiga» , pelo que o suplicante e os restantes moradores daquela rua e suas circunvizinhas «se obrigava como com efeito obriga a mandar demolir o Postigo das Verdades que se acha no fim da mesma rua e a parede que existe por cima dele, e lado do nascente e depois a mandar fazer debaixo … uma cómoda serventia no mesmo sítio, formando nele uma lingueta em lugar dos degraus tudo bem reparado e seguro, e à sua própria custa e na forma que se lhe ofereceu fazê-lo ... e sem causar prejuízo algum ao público logo que depois que for finda a dita obra se obriga mais a mandar pôr um padrão junto à Capela de Nossa Senhora das Verdades e escrever nele um letreiro em que se diga e conheça em todo o tempo do mundo, que naquele sítio haviam monumentos de um arco que ameaçava ruína considerável o qual mostrava vestígios da cidade antiga....».[1]
Creio que esta porta ou postigo foi no século XI e XII a chamada porta da traição, comum a outras muralhas coevas, que em algumas localidades ainda subsistem por não terem sofrido a pressão modernizadora a que o Porto sempre esteve sujeito (ajudou-me a chegar a este pensamento o artigo do Dr. Ferrão Afonso publicado em 2004 na revista O Tripeiro, sobre o muro velho intitulado Às voltas com a cerca). Este postigo constituiria assim, na fase original da cerca românica, a única entrada para o burgo a par com a muito mais importante porta da Vandoma. As portas de São Sebastião e de Santana serão portanto posteriores a elas. O próprio nome dela - porta das Mentiras - talvez se relacione diretamente com a expressão porta da traição. Este tipo de portas, ou mais acertadamente, postigos, eram utilizados para fuga das populações e guarnições dos castelos ou localidades, mas poderiam igualmente ser utilizadas, se franqueadas por algum traidor, para entrada dos exércitos inimigo, que frequentemente montavam cercos de vários meses às localidades.
1 e 2 acesso às escadas das Verdades que posteriormente se bifurcam nas escadas do barredo e na rua da Sra. das Verdades : a foto 2 mostra-nos o local onde muito provavelmente se erguia o arco
Logo depois de passarmos esta porta, o caminho flete para a esquerda, onde mais abaixo se cruza com um outro arco que ainda hoje é muitas vezes denominado Arco das Verdades. Na realidade trata-se apenas de um arco do aqueduto que levava água canalizada ao colégio jesuíta.
o arco das Verdades visto do local onde se situou a verdadeira Porta das Verdades (1). Veja-se que do antigo aqueduto subsiste um outro arco também visível na foto; bem como um outro completo e outro pela metade, visíveis no paredão que continua para nascente (2)
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1- ver A rua dos Cónegos, vol. 2, p 211.