A Porta do Sol
Reinicio a trasladação das publicações que se encontravam alojadas na casa antiga d' A Porta Nobre, no blogspot. O primeiro artigo aqui transcrito vem do segundo ano da primeira série da revista O Tripeiro (1909-1910). Ele torna-se ainda mais interessante, a meu ver, por ter sido originalmente publicado na revista Porto Illustrado de 1863; portanto numa altura em que a Porta do Sol ainda existia. No segundo, da mesma revista mas já bastante truncado, continua a descrever-se a Porta do Sol e suas imediações, agora da memória de um portuense (1926). Na última parte da republicação, coloco algumas gravuras, que se bem que conhecidas, vêm acompanhadas com comentários e notas. Finalmente uma quarta parte, mais curtinha, onde transcrevo um documento que julgo ainda inédito, naquela que é uma pequena surpresa para os meus leitores...
Espero que gostem!
I - «A ANTIGA PORTA DO SOL
Da muralha que circundou o Porto, construída durante os reinados de D. Afonso IV, D. Pedro e D. Fernando, poucos vestígios existem hoje, dignos de especial menção. O único, talvez, é a Porta do Sol. Porém, a Porta do Sol, elegante construção que ela é, e que bem se mostra despida do caráter dessa antiguidade, a que pertence a muralha; tal como ela existe e como se vê na nossa gravura, não é contemporânea da grande obra que ocupou, diz-se, os reinados dos três soberanos.
Além das portas que costumavam ter todas as muralhas das terras afortalezadas, que eram as portas principais para o serviço publico, havia também outras portas mais pequenas, de somenos construção e pequeno concurso, a que batisaram com o modesto nome de postigos, como o dos Banhos e do Pereira, que ainda se vêm de pé, estes com saída para o rio. Pela parte da terra havia outros, e um destes era o do Sol.[1]
Porém, sobre o velho Postigo do Sol, por se achar extremamente arruinado, se levantou em 1768 o arco atual, que custou a quantia de 960$306 reis, sendo feito por ordem do general e governador das justiças que então era João d'Almeida [sic] e Melo, pai do grande Francisco d'Almada. Os mestres pedreiros Caetano Pereira e José Francisco foram os que arremataram e levaram a cabo esta obra, que ficou concluída no mês de agosto do dito ano de 1768; mas só a 28 de fevereiro do ano seguinte é que foram embolsados da sua importância.
i1 - a Porta do Sol num desenho apresentado no artigo d' O tripeiro
Eis aqui a conta, conforme se vê no livro competente, que se acha no cartório da câmara desta cidade:
Liquidação do que importa a obra da Porta do Sol feita por ordem do Il.mº e Ex.mº Sr. General e Governador das Justiças.
- 4982 palmos de esquadria lavrada de escada de soco, que corre em volta por baixo de toda a obra, superfície das pilastras, e na superfície da imposta, arquitrave e friso, em rústico, e superfície do arco, tudo feito e acabado, posto em seu lugar conforme arrematação e plano - a preço de 79 réis ... 393$578
- 2475 palmos de moldura nas bases das pilastras, capiteis e friso, compreendendo tudo em volta e seus membros particulares, como também o coronamento do tímpano, tanto pela parte interior como exterior, e acabado conforme a arrematação, o palmo pelo preço de 130 rés ... 321$750
- 70 braças e mais 22 palmos no interior da porta no cheio de alvenaria argamassada, a braça de 200 palmos, conforme arrematação, pelo preço cada uma de 2$280 ... 159$765
- 1140 palmos de lajeado no pavimento da empena, o palmo a preço de 18 réis ... 20$220
- 3 braças e mais 175 palmos de alvenaria na parte que uniu o muro à porta da parte do Convento[2], a preço cada braça de 1$400 réis ... 4$997
- 42 braças e mais 250 palmos no muro que fizeram no sítio onde foi a torre, cada braça a preço de 1$400 réis ... 59$716,6/9
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960$306/9
Soma a conta toda a quantia de novecentos e sessenta mil trezentos e seis reis, mais seis nonos de real, que tanto se deve aos mestres.
Porto, 29 de agosto de 1768
Isto dizia o Porto Illustrado, de junho de 1863; mas o camartelo do progresso, de então até hoje, encarregou-se de suprimir estas relíquias do velho Porto. Qual mal fazia à cidade a conservação do arco do postigo do Sol?»
*
II - Uma memória de 1926
«Queira o leitor acompanhar-me. A visita é perto e não o cansarei. Sairemos da Praça da Batalha, enquanto não vem o carro eléctrico da linha 17, cuja chegada está para demora, passaremos ao lado do sul do teatro de S. João e pela frente do Quartel General e Casa Pia e, deixando ao nosso lado esquerdo a Rua do Sol e o Recolhimento das Meninas Desamparadas, encaminhar-nos-emos para a Avenida Saraiva de Carvalho, e em frente ao Dispensário faremos alto. Terminou o passeio.
O leitor, se é leitor costumado de O Tripeiro, está farto de saber que o Porto teve duas cinturas de muralhas de defesa: A mais antiga e menor - a do Burgo - (...) e a mais moderna, (chamada Fernandina, por se haver concluído no reinado de D. Fernando), de muito maior perímetro, porque a cidade tinha crescido em tamanho. [3]
(...)
A Porta da Batalha era à entrada de Cima de Villa; a Porta de Carros, no largo da Feira de S. Bento; o Postigo de Santo Eloi, nos Lóios; a Porta do Olival, na Cordoaria; a Porta Nova ou Porta Nobre, próximo a Miragaia, e a Porta do Sol, no ponto onde pedi para nos determos, isto é, em frente ao Dispensário.
Repare o leitor para a gravura que acompanha estas linhas. Ao centro verá a Porta que uma Câmara de conspícuos vereadores entendeu mandar deitar abaixo em 1875 para se ampliar o edificio da Casa Pia. [4]
i2 A Porta do Sol aqui devidamente acompanhado com estruturas ainda hoje existentes: ao seu lado esquerdo o mirante de Santa Clara, uma antiga torre da muralha que ainda hoje existe à face da Rua Saraiva de Carvalho; à direita o edifício da antiga Casa Pia portuense (ver uma mais completa descrição mais abaixo).
Chamava-se Porta do Sol, por que numa das faces do tímpano tinha esculpida a figura de um sol com os raios respetivos. (...) Primeiramente chamou-se Postigo do Carvalho ou dos Carvalhos e depois de Santo António do Penedo, por causa de uma ermida deste santo que aí se construiu.
Em 1768 achava-se em completo estado de ruína. O governador D. João de Almada e Melo fê-la demolir e mandou edificar em seu lugar, uma nova, tal como a representa a gravura, ornamentada com o sol em que falei e com esta inscrição latina:
SOL HUIC PORTAE
JOSEPHUS LUSITANO IMPERIO
JOANNES DE ALMADA E MELLO
PORTUCALENSE URBI FINITIMISQUE
PROVINCIIS AETERNUM
JUBAR GANDIUM PERCUNE
A gravura que ilustra esta página [ver i2] é a reprodução de uma outra feita a lápis pelo antigo e muito considerado professor de desenho Snr. Francisco José de Sousa, e copiada a crayon, para O Tripeiro, com a sua bem conhecida aptidão artística, pelo meu querido amigo e colaborador artístico Snr. José Augusto de Almeida.
Por ela poderemos muito bem ficar fazendo uma ideia da disposição do local em 1859.
(...) Do lado esquerdo, ao fundo, vê-se uma parte do Convento de Santa Clara, no qual funciona presentemente o Dispensário; mais à frente, o mirante das freiras, que ainda lá existe, actualmente sem cobertura, e no primeiro plano um barracão baixo. Como, ao tempo, na cidade não havia quartel para cavalaria permanente, era nos barracões do Largo da Policia que se recolhiam as praças e os solípedes dos destacamentos de cavalaria vindos, de quando em quando, de Bragança e Chaves, para aumentar a guarnição do Porto. No do lado esquerdo aquartelavam-se as praças e no da direita os animais.
Junto à Porta do Sol, do lado direito, vê-se uma parte do edifício da Casa Pia. Separada dele, por uma rua, a casa para alojamento dos oficiais de cavalaria, nos baixos da qual existia um depósito de palha, e à frente as cavalariças. Um cruzeiro com a imagem do Senhor dos Aflitos, cruzeiro que, mais tarde, foi mudado para junto da capela de Santo António do Penedo, completa o quadro.
Basta de maçada, leitor. Quando quiser pode voltar à sua vida e ir contemplar o chavascal onde se ergueu a Capela da Batalha, se não preferir ir tirar o retrato á la minute ou tomar um copo de cerveja gelada à Cervejaria Bastos, enquanto espera pelo elétrico n.º 17. (...) »
H.P. in O Tripeiro, 1926
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III - O local e a sua evolução, visualmente falando...
Eis algumas imagens sobre a evolução do lugar onde a Porta do Sol se implementava, comparativamente com a nossa época.
i3
i3 Na primeira imagem vê-se a subida para a Porta do Sol quando a rua Saraiva de Carvalho ainda não existia, e uma rua mais estreita - a de Santo António do Penedo - ligava a rua Chã à dita entrada e saída da cidade. Assinalo a laranja com um retângulo o Palacete do Visconde de Azevedo (ainda existente) e com uma seta verde um outro edifício que fora de um Miguel Brandão da Silva. Este último estava encostado à Capela de Santo António do Penedo, que foi também ela demolida por esses anos. Iniciada a destruição de toda esta área em 1875 - precisamente com a demolição da Porta do Sol - em 1886 desapareceria quase tudo o resto. Motivo: criar novo e desafogado acesso ao tabuleiro superior da Ponte D. Luíz, ficando como se apresenta na atualidade na segunda imagem.
i4
A i5 mostra a localização de: a laranja o mesmo ângulo que surge na primeira imagem, a vermelho, o lugar por mim estimado (aceito rebate) da existência da Porta do Sol, o circulo verde aponta o local do edifício adossado à Capela de Santo António do Penedo e a azul o da dita capela. Por curiosidade, marquei com a estrela rosa o local onde foi instituída a "Feira da Ladra" no Porto (à imitação da lisboeta), cujo terreno aparece delimitado por um muro na imagem da parte II.
i5
Na i6, que complementa a anterior, verificamos que a Porta do Sol ficaria junto ao local onde hoje se encontra o quiosque embutido no muro.
i6
Na i7 e i8 temos novamente uma planta do como era a área imediatamente fora da Porta do Sol (conhecida por séculos como Carvalhos do Monte), e tal como ela se encontra agora. O local onde estavam as cavalariças é actualmente ocupado pelo término do Eléctrico 22. Para que o leitor não se perca, assinalo a capela do antigo asilo das Desamparadas que servirá como ponto de referência para o resto.
i7 e i8
Finalizo com a "cereja em cima do bolo", isto é, uma fotografia - a única que conheço - da Porta do Sol. Aqui se pode vislumbrar, por entre a porta, parte dos edifícios mencionados acima (i9).
i9
Compare o leitor com a i10, mais conhecida, onde se vê a base de um dos pilares da porta, assinalado em ambas as imagens. E por último faço a transição da i10 para a i11, assinalando a primeira torre ainda subsistente da muralha fernandina na paisagem atual.
i10 e i11
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IV - A arrematação da obra da Porta do Sol
Naquele que é um aditamento à publicação original de 2014, transcrevo devidamente adaptada para a ortografia atual, a arrematação da porta que temos vindo a estudar. Foi uma surpresa para mim descobrir esta pequena (e muitas outras) preciosidade num dos livros de arrematações de obras do Arquivo Municipal do Porto. Esta em particular vem lançada a fl. 25v e 26 do livro 4.
« Termo de arrematação da Porta do Sol que fez o mestre pedreiro José Francisco e o mestre pedreiro Caetano Pereira onde se acha o postigo de Santo António do Penedo.
Aos quinze dias do mês de maio de mil setecentos e sessenta e sete anos nesta cidade do Porto e Casa do Senado da Câmera onde assestiram o Doutor José Paulo de Souza Juiz de Fora do Cível e Vereadores atuais com assistência do Procurador da cidade e aí andando a lanços a Porta do Sol que de novo se abre em o postigo de Santa Clara, lançaram em a dita obra, depois de vários lanços em que tinha andado feita com as condições aqui declaradas abaixo o mestre José Francisco natural de Paranhos e o mestre Caetano Pereira natural da freguesia de Santo Ildefonso.
A saber:
- A alvenaria feita de pedra nova dando os ditos mestres cal, saibro, e tudo o mais por sua conta, a dous mil duzentos e oitenta reis a braça;
- Esquadria cada palmo a preço de setenta e nove reis;
- Molduras o palmo facial a cento e trinta reis;
- Palmo de roço cúbico a dez reis;
- Entulho a braça de mil palmos a trezentos reis.
E com estas condições se obrigaram os ditos mestres a dar a dita obra acabada por todo o mês de outubro dando-lha demolida, logo em o mês de maio, ou quando não depois da demolida a cinco meses; o que assinaram obrigando-se por sua pessoa e bens a satisfaze-lo, do que fiz este termo eu João de Faria de Sousa. »
[ASSINATURA DOS PEDREIROS]
Novo aditamento
Por ser igualmente relevante e porque se trata de uma complementaridade em relação à arrematação que lemos acima, poderá o leitor ler agora o termo de arrematação da demolição do postigo da muralha que antecedeu esta bonita porta, infelizmente também ela desaparecida (a pontuação é minha).
« Termo de demolição e desmancho da torre e muro do postigo de Santo António do Penedo que rematou o mestre pedreiro Manuel dos Santos
Aos vinte dias do mês de Maio de mil setecentos e sessenta e sete anos nesta cidade do Porto e casa do Senado da Câmara onde assestiram Dr.ª José Paulo de Sousa Juíz de Fora do cível e vereadores atuais com assistência do Procurador da cidade, aí andando a lanços a demolição e desmancho da torre e muro do postigo de Santo António do Penedo lançou nela Manuel dos Santos da freguesia de S. Martinho de Cedofeita e depois de vários lanços em que tinha andado a dita demolição da torre e postigo como também o arrumar toda a pedra que tirar de modo que não houvesse embaraço para a factura da nova porta que ali está determinado fazer-se, se lhe houve por rematada ao dito mestre pelo preço de quarenta e seis mil reis por tudo do que fiz este termo que ele assinou e eu João de Faria de Sousa o escrevi.
[Assinatura do Pedreiro] »
i12 Pormenor de uma panorâmica da cidade onde se vê o convento de Santa Clara (1), a torre da muralha que ainda hoje existe junto à estátua de Arnaldo Gama (2), o edifício chamado da Casa Pia (3) e finalmente o frontão da Porta do Sol (4) que é claramente visivel abaixo do 4.
___________
1 - O nome mais antigo que conheço para este postigo é o de Postigo dos Carvalhos do Monte. A zona do convento das clarissas, onde se encontrava este postigo/porta, era bem mais fragoso até ao século XVIII, época em que se iniciaram obras de desmonte dos grandes penedos que por ali existiam; aliás a capela de Santo António do Penedo já desaparecida, era pelo seu nome indicador disso mesmo.
2 - De Santa Clara.
3 - Na realidade à época da sua construção a muralha gótica ou fernandina abarcou muito espaço ainda não urbanizado certamente tendo em conta a futura expansão da cidade o que veio a verificar-se mais de cem anos depois, no final do século XV mas sobretudo princípio do XVI.
4 - «...foi um vandalismo quasi escusado, por que o edifício era bastante vasto e o monumento (que em nada estorvava o trânsito público, porque o vão do arco era amplo) pela sua elegância, adornava o sítio e era um padrão comemorativo do varão a quem o Porto tanto deve». Pinho Leal, in Portugal Antigo e Moderno, vol. VIII, pag. 285. Crê o autor deste blogue que a porta não foi deitada abaixo para se aumentar ao edifício da Casa Pia, mas sim para alargar o acesso à mesma por aquele lado (é o que me é possível concluir pela observação da planta na i7 quando comparada com a i8 [imagem do googlemaps]).
Última modificação: 17/10/2018