Romance às obras setecentistas na Sé
Como é geralmente sabido a Sé Catedral do Porto chegou aos início do século XX com o aspeto que lhe foi dado após a Sede Vacante ocorrida dois séculos antes[1]. Com efeito, as obras que o Cabido operou na fábrica da nossa secular igreja vestiram-na de elementos barrocos, tendo para isso sido sacrificados muitos dos seus elementos românicos originais e outros desaparecido por detrás de novas paredes, talha e estuque... No século passado estando a DGEMN e seguir uma política de reintegração dos monumentos no seu desenho românico original, se por uma lado eliminou muitos desses anacronismos setecentistas colocando à vista estruturas originais do monumento que se pensavam para sempre perdidas, por outro lado fez desaparecer muitas obras de arte barrocas, no conjunto de todo o monumento. Assim, é um facto que hoje nela podemos apreciar bastante trabalho de pedreiro de excelente execução, contudo longe de ser medieval ele próprio ainda não completou cem anos de idade! Talvez agora, no século XXI, com uma outra forma de encarar e acarinhar os monumentos que herdamos de geração em geração, a nossa Catderal possa descansar de semelhantes esbulhos; e que as gerações atuais e vindouras não tenham ideia de a modernizar ou de a desmodernizar com uma suposta reintegração (o que quer que isso queira dizer!).
Mas voltemos ao século XVIII. Existe na Biblioteca Pública de Braga um Romance não datado e não assinado, que é particularmente interessante de ler: trata-se nada mais nada menos do que uma crítica ao Cabido e ao cónego encarregado das obras da Sé por aquela mesma instituição. Se não se trata de um documento profundo e importante em termos históricos, não deixa ele de ser bastante curioso e jocoso. Aqui o deixo transcrito do volume II da obra O Porto na Época dos Almadas de Joaquim Jaime B. Ferreira Alves (1990), atualizando apenas a ortografia. Espero que vos agrade!
interior da Sé Catedral antes das transformações operadas pela DGEMN nos anos vinte e trinta do século passado. Este era o aspeto que havia resultado das campanhas de obras barrocas, criticadas no texto.
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«Falecendo o Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor D. Frei António de Sousa, bispo do Porto em 4 de junho de 1766, o Ilustríssimo, e Reverendíssimo Cabido, logo depois do seu falecimento intentou, e com efeito pôs em execução o mandar concertar a igreja da Sé; tanto por fora, como por dentro: para este fim nomeou diretor das obras ao reverendo doutor José Pedro Vergolino, Acipreste da sua catedral. A esta eleição se fez o seguinte
Romance
Senhores da Sé Vacante
Um zeloso, e grande amigo
Da vossa honra, pertende,
Que um pouco lhes deis ouvidos.
Assim só de vos dizer
Do muito que se está rindo
Quasi toda esta cidade
Desse vosso patetismo
Pois sendo vós tão discretos
E prezados de entendidos;
Fostes eleger mestre de obras
ao preclaro Vergolino!
Um homem, que às suas rendas
Nunca lhe soube dar tino;
Pois sempre as trouxe emprazadas
Em mãos de outro senhorio!
Um homem, que só de barro
Sabe formar assovios,
Pintar de pardo as paredes,
Formar no ar labirintos!
Um homem que tem ideias
Para gastar de improviso
Cem moedas em uma noute,
Fazendo gala do vício!
Um homem, que os curadores
Não lhe poderão dar isso;
Porque em todos os empregos
Sempre mostrou desvario!
Um homem, que governar-se
Nunca soube, e por isso
Mete em casa o Pirralho
Diretor do indivíduo!
mais notáveis elementos barrocos eliminados da fachada da Sé Catedral, aquando da reintegração do século XX
Enfim, um homem de pedras,
Sem dar nunca um indício;
Que ainda nos séculos vindouros
Virá a ter algum juízo!
A este pois só achasteis
Mais capaz nesse Cabido,
Para diretor das obras;
De que todos se estão rindo!
Eu bem sei, que a Sé por fora
Fica um quadro de embutidos,
Um tabuleiro de damas,
Um composto de bonitos.
Um mapa todo de figuras,
Mui bem lançadas nos riscos;
Que as do jardim de Versalhes
Não podem ter mais feitio.
Eu bem sei, que agrada aos olhos
Da dama o rosto bornido;
Porém a pagar-lhe os gastos
Soa muito mal aos ouvidos.
Senão dizei-me senhores;
Que tem as rendas do bispo,
Para pagar as pinturas
Do chafariz do registo?
Tanto ferro esperdiçado
Tanto ouro embutido,
Tantas jornais, tantos óleos,
É zelo, ou desperdício?
Um chafariz, que se agora
Lança água do Registo;
Em vindo novo prelado
Ninguém nele molha a bico.
Para borrar-lhe o letreiro,
E por-lhe por subscrito;
Que se murió para el mundo
La que foi nata em Cabido.
Dizei-me: as pedras que estavão
Há tantos anos
Duraram agora mais
Com a reforma dos picos?
As tintas pelas paredes
Pelas juntas tantos riscos
Farão que tenhão mais dura
Com os fortes desse edifício?
Não era melhor, meus senhores,
Conservar o pardo limpo,
E cuidares lá por dentro
No que é culto divino!
Encher de ouro os ornamentos;
Fazer cortinas de tino;
Alcatifar a Sé toda,
Os altares todos ricos!
A Sé do Porto no século XX de Maria Leonor Botelho, é um livro imprescindivel para quem queira conhecer quem e como se "fez" a Sé catedral que chegou aos nossos dias
Mas que há-de ser se elegestes
Um mestre de obras noviço
Que tudo quanto professa
Entesoura nos abismos!
E o pior, meus senhores, é
pagar-lhe o feitio;
Se estiverdes pelas contas,
Que vos der o Vergolino.
E haveis de ser tão bons homens.
E homens de tanto brio,
Que digais: Estamos por tudo
Sem mais forma de juízo
Ora tomai meus concelhos,
Assentai no que vos digo,
Recebi o rol dos gastos
Estando vós em Cabido.
Depois de vistas as contas,
E depois de tudo lido,
Sem que seja relator,
Porque é parte o Vergolino.
Por acordão resolvemos
Pague-se o que for preciso;
E tudo o que for supérfulo
Pague a parte, está dito
Fim»
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Agora que terminou a leitura do documento, pergunto ao leitor: não se trata de um curioso e interessante testemunho crítico daquele espaço, daquele tempo?...
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1 - Não obstante desde pelo menos o século XVI existirem registos de obras na sua fábrica. A mais marcante é a substituição da capela-mor românica (em deambulatório) pela que agora existe, do início do século XVII e que resulta da vontade do bispo D. Frei Gonçalo de Morais - ver mais aqui).